28 de abril de 2009

A crença na teoria da reencarnação não ajuda a vencer o temor da morte?




Pergunta: A crença na teoria da reencarnação não ajuda a vencer o temor da morte?


Krishnamurti: Que entendeis por temor, e que entendeis por morte? Não estou tergiversando. Por que tendes medo da morte? Evidentemente, vós temeis a morte porque ainda não vos preenchestes. Amais alguém e há o perigo de perder essa pessoa; estais escrevendo um livro e podeis morrer sem o terdes terminado; estais construindo a vossa casa e a morte pode chegar, antes de concluída a obra: desejais fazer alguma coisa e a morte pode desferir-vos o seu golpe. Que temeis? Temeis, evidentemente, partir de súbito, não vos preencherdes, temeis ser obrigado a findar. Não é o findar que vos faz ter medo? Não estamos, por ora, tratando da morte – discutiremos a seu respeito mais adiante.


Estamos tratando do que se entende por temor. É bem evidente que o medo só existe em relação com alguma coisa. Há temor em relação com o vosso preenchimento. A questão pois, é esta: há preenchimento? Podeis dizer que estou fazendo rodeios, dando uma explicação palavrosa. Mas não é tal; a vida não é coisa a que possamos dar respostas categóricas de “sim” ou “não”. A vida é muito mais complexa, muito mais bela e sutil.


Aquele que deseja uma resposta pronta, é melhor que tome um narcótico, seja o narcótico da crença ou o do divertimento, porque então não terá mais problemas. Para compreender a vida, o homem precisa explorar, descobrir, e essa exploração, esse descobrimento são negados quando a mente está amarrada a alguma crença? Em tal caso, é impossível compreender este problema em sua totalidade.


Que se entende por temor? O temor existe em relação com alguma coisa, essa coisa é o preenchimento de nosso “eu”, em qualquer medida, grande ou pequena. É possível o preenchimento do “eu”? Que se entende por “eu”? Vamos examinar esse assunto com muita atenção, para ver o que é esse “eu”. O “eu”, evidentemente, é um feixe de lembranças, que inclui aquela coisa que chamo eterna, permanente. Essa parte não física do “eu”, ainda que eu a chame Atman, é memória, está sempre compreendida na esfera do pensamento. Isso não podeis negar, não é verdade? Se podeis pensar em alguma coisa, ela ainda está dentro da esfera do pensamento.


O que o pensamento produz, é sempre produto dele próprio, e portanto coisa do tempo. Não há dúvida de que esse todo é o “eu”, o “ego”, quer superior, quer inferior – todas as divisões estão na esfera do pensamento. Por conseguinte, a memória, qualquer que seja o nível em que fixeis o vosso pensamento, é sempre memória. O “eu”, portanto, é um feixe de lembranças, e nada mais. Não existe entidade espiritual identificada como “eu” ou distinta do “eu”; porque, quando dizeis que existe uma entidade espiritual separada do “eu”, ela é ainda um produto do pensamento e por conseguinte está ainda compreendida na esfera do pensamento, - e pensamento é memória. Assim, o “vós” e o “eu”, superior ou inferior, qualquer que seja o ponto em que o fixemos, é memória.


Ora, enquanto existe memória, que é o desejo de vir a ser, há sempre um objetivo para se alcançar; é assim que se verifica a continuação da memória, do “eu” e do “meu”. Isto é, enquanto há um objetivo para se realizar, em proveito do “eu’, e do “meu”, e portanto haverá sempre temor.


O temor só desaparece quando não há mais continuação do “eu” – sendo o “eu” memória. Em outras palavras: enquanto estou em busca de preenchimento, essa mesma busca gera temor da incerteza. Por isso temo a morte. Quando não tenho o desejo de me preencher, não há mais temor. O desejo de preenchimento desaparece logo que compreendo o processo do preenchimento. Não posso simplesmente afirmar que não tenho desejo de preenchimento, pois isso não passa de repetição de uma verdade, sendo, portanto mentira. Enquanto houver qualquer atividade do “eu”, há de haver o temor da morte, o temor de findar, o temor de não continuar.


Que entendemos por morte? É claro que tudo aquilo que é submetido a uso constante chega a um fim; qualquer máquina que funciona constantemente se gasta. De modo idêntico, o nosso corpo, que está em uso constante, chega a um fim, por doença, acidente ou pela idade. Isso é inevitável: pode durar cem anos ou dez anos, mas, visto que está em uso constante, tem de gastar-se. Reconhecemos e aceitamos esse fato, porque o vemos suceder sempre.


Mas existe o “eu” que não é o meu corpo, o “eu” que é minha compreensão acumulada, as coisas que fiz nesta vida, as coisas pelas quais lutei, as experiências que acumulei, as riquezas que juntei – não o “eu” físico, mas o “eu” psicológico, que é memória e que desejo continue a existir, que não desejo que finde. Em verdade, não é a morte que tememos, mas esse findar. Desejamos continuidade. Isto é, desejais que vossas lembranças persistam, com todas as suas riquezas, suas tribulações, sua fealdade, sua beleza, etc. – quereis que tudo isso persista.


Assim, se alguém vos garante essa continuidade, vós o abençoais, o venerais, e fugis de todo aquele que vos aponta a necessidade de compreender aquele “eu”. Na morte, é o fim psicológico que nos causa medo, não é verdade? Não sabeis, na realidade, o que é a morte. Vedes passar enterros, vedes sem vida uma coisa que era antes cheia de vida e de atividade, e não sabeis o que há além. Vedes essa coisa inanimada, desnuda, que se decompõe, e desejais saber o que acontece além – isto é, desejais uma garantia de continuidade de vossas lembranças.


Assim, de fato, não estais interessados em saber o que há além, não estais interessados em descobrir o desconhecido: o que desejais é ter certeza da continuidade de vossas lembranças.Não vos interessa a morte, interessa-vos apenas a vossa própria continuidade como memória. Só quando tiverdes interesse, podereis saber o que é a morte; mas não vos interessa descobrir o significado, a beleza do que está além, não vos interessa o desconhecido, porque só vos interessa o conhecido e a conservação do conhecido. Por certo, o desconhecido só pode ser visto quando o não tememos, o que significa que enquanto estiverdes apegado ao conhecido e desejardes que o conhecido persista, nunca chegareis a conhecer o desconhecido. É muito significativo, não achais? – o fato de que entregastes a vossa vida ao conhecido e não ao desconhecido. Têm-se escrito livros sobre a morte, porque o que interessa é a continuidade.


Ora, não sabeis que aquilo que continua não tem renascimento, não tem renovação? Uma coisa que se repete constantemente, que está ligada a uma cadeia infinita de causa e efeito, sem dúvida não tem renovação. Ela subsiste, simplesmente; sofre alguma modificação, alguma alteração, mas continua essencialmente a mesma. O que é sem cessar a mesma coisa, nunca será novo. Isto é, desejo que o dia de ontem continue, através de hoje, no amanhã; e esse processo do passado que se transporta, através do presente, para o futuro, é o “eu”.


É esse “eu” que quero que persista, e essa continuidade, obviamente, não tem renovação, porque tudo que continua conhece o medo do fim. Por conseguinte, quem deseja continuar a existir sempre, sempre estará nas garras do temor. Só no desconhecido há renovação; é no desconhecido que há criação, e não na continuidade.


Assim, precisais sondar o desconhecido, mas para tanto não podeis ficar apegado à continuidade do conhecido; porque o “eu” e a constante repetição do “eu” recaem no campo do tempo, com suas lutas, suas realizações, suas lembranças. O “eu”, que é um feixe de memórias identificadas como “eu”, quer existir sempre; e não há dúvida de que a continuidade permanente no tempo é um fator de deterioração... Só no desconhecido se encontra renovação, um estado de novo; precisais, pois, investigar o desconhecido. Isto é, precisais investigar a morte, assim como investigais a vida, com suas relações, sua variedade, suas profundezas, seus desgostos e alegrias.
O conhecido é memória e tem continuidade; e pode o conhecido estabelecer relação com o desconhecido? Não pode, evidentemente. Para investigar o desconhecido, a mente precisa tornar-se o desconhecido. Estais muito familiarizados com o “eu”, o “meu”, com vossos companheiros, vossa memória, vossas organizações religiosas, vossas vaidades e paixões – todas essas coisas constituem a vossa vida.


Superficialmente, essas coisas vos são bem conhecidas, e com essa mentalidade do conhecido vos chegais ao desconhecido, procurais estabelecer relação entre o conhecido e o desconhecido. Desse modo, não tendes relação direta com o desconhecido e, por isso, temeis a morte.


Que sabeis acerca da vida? Pouquíssimo. Não conheceis a vossa relação com a propriedade, com vosso vizinho, vossa esposa, vossas idéias. Conheceis apenas as coisas superficiais, e desejais fazer continuar essas coisas superficiais. Por Deus, que vida deplorável! Não é a continuidade uma coisa estúpida? Só o homem tolo deseja subsistir – nenhum homem que tenha chegado a compreender o sentimento das riquezas inerentes à vida, desejaria a continuidade.


Quando compreenderdes a vida, encontrareis o desconhecido; porque a vida é o desconhecido, a vida e morte são a mesma coisa. Não há divisão entre vida e morte; são os insensatos e os ignorantes que fazem a divisão, os que só se preocupam com o seu corpo e sua insignificante continuidade. Essas pessoas se valem da teoria da reencarnação como um meio de esconder o medo que sentem, como uma garantia de sua continuidade estúpida e banal. É óbvio que o pensamento continua; mas, por certo, o homem que procura a verdade não dá importância ao pensamento, pois o pensamento não conduz à verdade.


A teoria do “eu” que continua a existir, pela reencarnação, para chegar à verdade, é uma idéia falsa, inverdadeira. O “eu” é um feixe de lembranças, e isso é tempo, e a mera continuação no tempo não leva ninguém ao eterno, que está fora do tempo. Só se extingue o temor da morte, quando o desconhecido penetra em vosso coração. A vida é o desconhecido, assim como a morte é o desconhecido, como a verdade é o desconhecido. A vida é o desconhecido; mas nós nos aferramos a uma insignificante expressão dessa vida, e isso a que nos apegamos é simples memória, um pensamento que não se completou; por conseguinte, aquilo a que nos apegamos é uma coisa irreal, sem validade alguma. A mente se apega a essa coisa vazia, chamada memória, e memória é a mente, o “eu, qualquer que seja o nível em que nos agrade fixá-lo.
Assim, a mente, que está na esfera do conhecido, não pode chamar a si o desconhecido. Só quando há o desconhecido, um estado de incerteza absoluta, ocorre a cessação do temor, e com ela a percepção da realidade.


Livro: PAZ NO CORAÇÃO (páginas 68 a 76 )
Autor: J. Krishnamurti

Um comentário:

Rui Palmela disse...

Belo texto, muito oportuno e esclarecedor para nossas vidas que infelizmente ainda andam muito sem rumo, ao sabor da corrente duma Sociedade consumista e materialista onde só poucos se preenchem verdadeiramente por terem renunciado a ela.

Krishnamurti é um desses poucos que alcançaram a sua liberdade não seguindo pelos mesmos caminhos dos que andam há muito por amrgens opostas á verdade.

Meu abraço

Rui Palmela